O poder emergente da IA na descoberta de medicamentos de produtos naturais

Krittika Ralhan , Scientist, ACS International India Pvt. Ltd.

genetic engineering and dna microarray

Os produtos naturais são compostos, substâncias ou misturas produzidas por plantas, animais, micróbios e outros membros do mundo natural. Durante milênios, as pessoas utilizaram produtos naturais para curar todos os tipos de doença e, antes do advento da medicina moderna, eram os únicos produtos farmacêuticos da humanidade.

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), estima-se que cerca de 80% da população mundial hoje usa a medicina tradicional. Nos últimos 50 anos, os produtos naturais e seus derivados ainda são a fonte de novos medicamentos, mas existem grandes desafios para o uso em larga escala desses produtos devido à biodisponibilidade insuficiente e síntese química complicada.

Com o advento da computação avançada, melhores instalações de armazenamento de dados, técnicas sofisticadas de processamento de linguagem natural e recursos baseados em aprendizado de máquina (ML), os pesquisadores agora têm novas e poderosas ferramentas à sua disposição para incorporar nos estudos de produtos naturais. A inteligência artificial (AI) está viabilizando novos avanços e a ciência médica tem a oportunidade de continuar a aproveitar o que a natureza tem de melhor a oferecer para curar doenças humanas.

Avanços recentes em pesquisas orientadas por IA

Examinamos dados do CAS Content CollectionTM, a maior coleção de conhecimento científico publicado com curadoria humana, para mapear o cenário de publicações recentes (de 2010 em diante) sobre a IA no campo dos produtos naturais. Com a nossa visão panorâmica da ciência publicada em todo o mundo, descobrimos que a IA fez progressos significativos recentemente em áreas como previsão de estruturas, integração de dados e muito mais com produtos naturais que estão acelerando a descoberta de medicamentos.

Nossa análise encontrou mais de 600 mil publicações científicas (incluindo artigos de periódicos e publicações de patentes) relacionadas com a pesquisa de produtos naturais desde 2010. As publicações em periódicos dominam o campo, e a proporção de patentes em relação aos periódicos diminuiu nos últimos anos, indicando um interesse crescente na pesquisa acadêmica em detrimento dos produtos comerciais. Como a IA se encaixa nessa pesquisa? Observamos várias áreas de pesquisa de produtos naturais nas quais a IA, algoritmos de aprendizado de máquina e estudos baseados em redes neurais estão causando impacto:

Fig. 1 Gráfico de patentes e periódicos
Figura 1: número de publicações em periódicos e patentes por ano em pesquisas de produtos naturais (mostrados como barras azuis e amarelas, respectivamente) de 2010 a 2022.

 

  • Identificação do composto/alvo: a IA, com o apoio de algoritmos de aprendizado de máquina, analisa dados espectroscópicos para identificar e caracterizar compostos presentes em produtos naturais. Isso acelera o processo de identificação e isolamento de moléculas bioativas. Por exemplo, um artigo altamente citado publicado na Nucleic Acids Research descreve um servidor web, o NRPSpredictor2, que utiliza metodologia de aprendizado de máquina para melhorar as previsões de especificidade de substrato de enzimas biossintéticas de produtos naturais em bactérias. As plantas e micróbios produzem produtos naturais como metabólitos naturais usando genes conhecidos como clusters de genes biossintéticos (BGCs). A IA vem sendo usada para prever BCGs que podem codificar esses metabólitos.
  • Descoberta de medicamentos: a IA e seus subcampos, como o aprendizado de máquina, estão sendo aplicados em diferentes estágios do processo de descoberta de medicamentos. Por exemplo, os modelos de IA são utilizados para a triagem virtual de bases de dados de produtos naturais, para prever possíveis candidatos a medicamentos e avaliar suas propriedades farmacológicas. Redes neurais profundas (DNNs) são importantes para esses esforços e modelos de IA generativa conseguem prever candidatos a medicamentos e acelerar o pipeline da descoberta de medicamentos reduzindo o número de compostos para validação experimental.
  • Previsão de bioatividade: Modelos de aprendizado de máquina conseguem prever e classificar as atividades biológicas de produtos naturais a partir de estruturas químicas usando abordagens de correspondência de farmacóforos 3D baseadas em redes neurais profundas, conhecidas como modelos quantitativos de relação estrutura-atividade/propriedade (QSA/PR). Esses modelos ajudam a identificar compostos com potenciais terapêuticos específicos. Em um estudo recente, métodos baseados em aprendizado de máquina foram usados para realizar previsões in silico para antibióticos contra a Acinetobacter baumannii, levando finalmente à descoberta da Abaucina, que tem atividade bactericida contra a A. baumannii. Em outro estudo, uma abordagem baseada em IA usando um conjunto de dados bacterianos, naturais e treinados em produtos ajudou a descobrir o papel antibiótico da Halicina.
  • Otimização dos processos de extração: a IA auxilia na otimização dos parâmetros de extração para obter rendimentos máximos de compostos bioativos de fontes naturais. Isso reduz o tempo e os recursos necessários para testar os candidatos a medicamentos.
  • Integração e análises dos dados: a IA facilita a integração e análises dos imensos volumes de dados de estudos de genômica, proteômica e metabolômica. Essa abordagem holística permite uma melhor compreensão das interações complexas internas dos sistemas naturais.
  • Sinergias de previsão: as ferramentas de IA conseguem prever interações sinérgicas entre diferentes compostos, orientando pesquisadores na formulação de terapias combinadas com produtos naturais. Isso é particularmente valioso no tratamento de doenças complexas.
  • Previsão de toxicidade: os modelos de IA conseguem prever o potencial de toxicidade de componentes naturais, garantindo a segurança dos produtos antes de serem desenvolvidos como medicamentos ou suplementos para a saúde.
Fig. 2 Análise de integração de dados
Figura 2: ilustração que representa o uso de AI e ML na pesquisa de produtos naturais.

O interesse na IA e na pesquisa de produtos naturais tem crescido rapidamente nos últimos anos, com 650 publicações em periódicos e patentes, e um aumento correspondente nas proporções de patentes por periódico, o que indica um maior interesse comercial. Embora este seja um número relativamente pequeno de publicações, as publicações aumentaram constantemente entre 2010 e 2022, com um aumento desde 2020 (Figura 3). Descobrimos que a China domina o cenário de publicações, seguida pelos EUA e Índia, com correlação entre o uso predominante de produtos naturais na medicina tradicional chinesa e a introdução do Plano de Desenvolvimento de Inteligência Artificial de Nova Geração da China (2015-2030), que visa desenvolver capacidades relacionadas à IA na China.

O interesse também está crescendo em todo o mundo: observamos organizações com publicações sobre esse tema no Brasil, na Coreia do Sul, no Reino Unido, em Portugal, na Polônia e em muitos outros países. Os esforços na descoberta de medicamentos que estão sendo pesquisados também abrangem uma gama de possibilidades.

Oportunidades para a IA na descoberta de medicamentos

A IA desempenha funções de identificação, classificação e previsão da atividade de produtos naturais. As plantas são fontes conhecidas de diversos metabólitos secundários bioativos, como alcaloides e flavonoides, com propriedades antivirais, anticâncer, antibacterianas e antifúngicas. Programas e tecnologias alimentados por IA podem rever e analisar produtos naturais que tenham relação com essas propriedades em um ritmo mais rápido e assimilar dados de forma eficiente. E, como consequência, podem prever a atividade biológica e acelerar o processo de descoberta de medicamentos.

Por exemplo, diferente espécies de fungos (cogumelos) foram explorados por suas propriedades anticancerígenas, imunomoduladoras, antineurodegenerativas, anti-inflamatórias e antioxidantes. Os algoritmos com base em IA e ML podem ser usados para classificar espécies inéditas de cogumelos e identificar seus produtos naturais usando reconhecimento de imagem, elaborar estratégias para otimizar a extração de produtos naturais de fungos e mapear novos usos e propriedades de diferentes cogumelos ou outras espécies de fungos (Figura 5).

Fig. 3 Número de publicações de periódicos
Figura 3: número de publicações em periódicos e patentes por ano no campo de pesquisas de produtos naturais com IA (mostrados como barras azuis e amarelas, respectivamente) de 2010 a 2022. (A inserção representa o crescimento na proporção de patentes por periódicos nessa área nos últimos cinco anos, de 2018 a 2022).

O cenário atual da IA e produtos naturais

Hoje, a aplicação da IA em produtos naturais é mais usada em agentes antitumorais (Figura 4A) seguida por agentes antivirais e antibacterianos. Os analgésicos (medicamentos para alívio da dor), que constituem uma pequena porcentagem (2%) do total das principais aplicações, apresentaram um crescimento cinco vezes maior que a porcentagem do número de documentos de 2021 a 2022 (Figura 4B). Outras categorias de aplicação que apresentaram rápido crescimento são agentes anti-inflamatórios, agentes antidiabéticos, antineurodegenerativos e antimaláricos. Curiosamente, a porcentagem de documentos associados a agentes antibacterianos diminuiu de 2021 para 2022, indicando uma redução no interesse da comunidade científica nessa área.

Fig 4A e Fig 4B
Figura 4: A. gráfico de rosca representando as principais aplicações que demonstram o uso de IA na pesquisa de produtos naturais. B Crescimento da IA em relação às aplicações mais utilizadas ao longo dos anos (de 2010 a 2022).
Fig 5 Principais gêneros de plantas
Figura 5: principais gêneros (A) de plantas e (B) fungos relativos ao uso de IA na pesquisa de produtos naturais.

Realizamos análises de dados de substâncias aproveitando o CAS Content Collection e encontramos cerca de 5.000 substâncias que ocorrem concomitantemente com IA em pesquisas de produtos naturais em publicações em periódicos e patentes de 2010 a 2022 (Figura 6A). Investigações adicionais sobre as classes de substâncias sugerem que as mais importantes são pequenas moléculas orgânicas e inorgânicas, sequências de proteínas/peptídeos, polímeros, elementos e sais. O número de substâncias classificadas como pequenas moléculas orgânicas/inorgânicas é quase 60 vezes maior do que a próxima classe de substâncias, sequências de proteínas/peptídeos e elementos.

Entre as pequenas moléculas orgânicas/inorgânicas, a quercetina apresenta o mais alto nível de coocorrência com o uso de IA. A quercetina é um flavanol vegetal bioativo com poderosas propriedades antioxidantes e anti-inflamatórias. Ela demonstrou potencial no tratamento de câncer, AIDS, hipertensão e diabetes. Recentemente, a quercetina, com o kaempferol (outra molécula pequena que apresenta alta coocorrência com o uso de IA), demonstrou um efeito positivo contra o vírus da COVID-19. A IA está sendo utilizada para projetar modelos para ajudar a otimizar a extração da quercetina de fontes vegetais, projetando novos análogos de quercetina e criando modelos para testar os efeitos antioxidantes e anticancerígenos .

Após uma inspeção mais detalhada das sequências de proteínas/peptídeos, a vancomicina mostra coocorrência máxima com IA, especialmente para a concepção de estudos envolvendo titulações de dosagem para encontrar níveis de dosagem ideais. Da mesma forma, abordagens de ML são usadas para modelar a concentração de ciclosporina em modelos de transplante renal. Na categoria dos polímeros, a quitosana apresenta os níveis mais elevados de coocorrência com IA, o que se correlaciona com os estudos que destacam a síntese baseada em IA e testes de nanopartículas de quitosana para aplicações antimicrobianas.

Fig 6 Distribuição de substâncias associadas
Figura 6: (A) distribuição de substâncias associadas à IA na pesquisa de produtos naturais entre 2010 e 2022 do CAS Content Collection. A tabela do mapa de calor correspondente lista as 10 principais substâncias que ocorrem simultaneamente nessas classes. (B) Crescimento de substâncias selecionadas com IA (marcadas com o asterisco vermelho no painel A) ao longo dos anos (de 2010 em diante)

Panorama e oportunidades futuras

A última década foi revolucionária para o uso da IA na descoberta de medicamentos, e o campo dos produtos naturais não é exceção. A IA deixou de ser usada para a digitalização de informações de produtos naturais para algoritmos baseados em ML que fornecem previsões de bioatividade, até estudos recentes em que os cientistas usaram redes neurais para mineração de genoma e projeto de moléculas inspiradas em produtos naturais. Outros sub-ramos da IA, como o BioNLP, que se baseia em algoritmos que contêm representações médicas generalizadas, pode até ser usado para extrair informações de publicações científicas para identificar novas plantas bioativas ou fontes de produtos naturais.

A IA levou a uma mudança de paradigma na pesquisa de produtos naturais, mas alguns desafios permanecem. Um deles é a deduplicação, em que os mesmos compostos ou moléculas são descobertos repetidamente. Esse problema pode ser mitigado usando bases de dados e ferramentas sofisticadas baseadas em IA. Outro desafio com produtos naturais é que eles são frequentemente descobertos sem alvos proteicos conhecidos. Nesses casos, a IA pode ajudar a prever os alvos.

A integração da IA ​​na pesquisa de produtos naturais ainda está em fase inicial e é importante que os modelos preditivos sejam totalmente treinados para identificar e categorizar novos produtos naturais. À medida que as pesquisas continuam, as tendências de publicação indicam que a IA se tornará mais extensa em várias fases da pesquisa de produtos naturais. As oportunidades para encontrar novas moléculas de medicamentos a partir de fontes naturais continuarão a crescer e o pipeline da indústria farmacêutica, e, por consequência, os pacientes, colherão os benefícios. Saiba mais sobre nosso recente trabalho com a expansão do banco de dados do NuBBE no Brasil e o impacto de dados melhores para aperfeiçoar as previsões da IA.