As empresas farmacêuticas e funcionários de saúde pública estão aproveitando a experiência com a conhecida vacina contra a gripe para dar apoio ao desenvolvimento, à produção e administração de vacina(s) contra o novo vírus respiratório SARS-CoV-2. Embora todas as vacinas candidatas para a covid-19 sejam novas, algumas compartilham semelhanças com o que estamos familiarizados nos programas de vacinação contra a gripe amplamente difundidos. Como alguns países estão iniciando a distribuição de vacinas para a covid-19 e muitos mais se preparam para a aprovação antecipada de uma ou mais vacinas para a covid-19 nos próximos meses, este artigo vai comparar e contrastar os principais aspectos dessas novas abordagens de vacinação com a vacina da gripe mais comum.
A “vacina contra a gripe” fornece um modelo bem conhecido para vacinação generalizada
A vacina contra a gripe foi aprovada pela primeira vez para uso militar em 1945 e aplicada em soldados que lutavam na Segunda Guerra Mundial. No ano seguinte foi aprovada para aplicação em civis. Ao longo dos 75 anos desde então, a “vacina contra a gripe” tornou-se um item básico de saúde preventiva recomendado anualmente. ~50% da população dos EUA recebeu a vacina da gripe no ano passado, de acordo com os dados mais recentes dos Centros de Controle de Doenças do país, com as taxas de vacinação mais altas entre crianças e idosos sendo as mais consistentes.
Atualmente, as vacinas contra a gripe licenciadas nos EUA se enquadram em três categorias: vacinas de vírus influenza inativados (IIV), vacina de influenza viva e atenuada (LAIV) e vírus influenza recombinante (antígeno proteico) (RIV). As vacinas contra a gripe podem ser trivalentes, derivadas de duas cepas do vírus influenza A (IAV H1N1 e IAV H3N2) e uma cepa do vírus influenza B (IBV), ou, podem ser tetravalentes, com duas cepas de IAV e duas de IBV para fornecer cobertura imunológica mais ampla contra diferentes cepas do vírus influenza. A Tabela 1 fornece detalhes sobre algumas das marcas de vacinas contra influenza usualmente distribuídas nos EUA.
Tabela 1: Exemplos de vacinas contra influenza licenciadas
Nome comercial |
Fabricante |
Via de administração * |
Dose |
Faixa etária |
Tipo de vacina |
---|---|---|---|---|---|
Afluria |
Seqirus |
IM |
1-2 |
6 meses a 8 anos |
IIV (dividido) |
1 |
A partir de 9 anos |
||||
FluLaval |
ID Biomedical |
IM |
1-2 |
6 meses a 8 anos |
IIV (dividido) |
1 |
A partir de 9 anos |
||||
FluMist |
Medimmune |
IN |
1-2 |
2 a 8 anos |
LAIV |
1 |
9 a 49 anos |
||||
Fluarix |
GSK Biologicals |
IM |
1-2 |
3 a 8 anos |
IIV (dividido) |
1 |
A partir de 9 anos |
||||
Fluvirin |
Seqirus |
IM |
1-2 |
4 a 8 anos |
IIV (dividido) |
1 |
A partir de 9 anos |
||||
Agriflu |
Seqirus |
IM |
1 |
A partir de 18 anos |
IIV (dividido) |
Fluzone |
Sanofi |
IM |
1-2 |
6 meses a 8 anos |
IIV (dividido) |
1 |
A partir de 9 anos |
||||
Fluzone |
Sanofi |
IM |
1 |
A partir de 65 anos |
IIV (dividido) |
Fluzone Intradermal |
Sanofi |
ID |
1 |
18 a 64 anos |
IIV (dividido) |
Flublok |
Protein Sciences |
IM |
1 |
A partir de 18 anos |
RIV† |
Flucelvax |
Seqirus |
IM |
1-2 |
4 a 8 anos |
IIV (dividido)‡ |
1 |
A partir de 9 anos |
||||
Fluad |
Seqirus |
IM |
1 |
Acima de 65 anos |
IIV (dividido) mais adjuvante MF59 |
* IM (intramuscular; IN (intranasal); ID (intradérmico)
† Proteínas de hemaglutinina (HA) recombinantes produzidas em uma linha celular de inseto contínua (expresSF+®)
‡ Vírus propagado em células Madin Darby Canine Kidney (MDCK)
O tipo mais comum de vacina contra a gripe é a vacina do vírus influenza inativado. A fabricação requer instalações de produção dedicadas ao Nível de Biossegurança 2 onde o vírus é propagado, isolado por centrifugação e inativado quimicamente. O produto resultante é então tratado com um detergente para romper (dividir) as partículas virais e enriquecer os antígenos virais hemaglutinina (HA) e neuraminidase (NA) antes da filtração estéril e posterior embalagem.
Foi estabelecida uma robusta rede de distribuição da vacina contra a gripe ao longo dos anos na maioria dos países desenvolvidos. Cadeias de fornecimento confiáveis, estabilidade do produto e sem a exigência de equipamentos especializados para armazenamento e administração apoiam a ampla disponibilidade de vacinas contra a gripe em ambientes clínicos e ad hoc, como locais de trabalho, escolas, mercearias e farmácias locais, onde são mais comumente administradas com a aplicação de uma única dose anual da vacina.
Novas considerações sobre a vacina para a covid-19
Ainda não existem vacinas contra a covid-19 nos Estados Unidos, porém, um esboço do cenário das candidatas a vacina fornecido pela Organização Mundial da Saúde (acessado em 2 de outubro de 2020)1 mostra 42 vacinas em avaliação clínica e mais 151 candidatas em avaliação pré-clínica. Das 42 candidatas em avaliação clínica, 7 são vacinas inativadas, 13 são subunidades, 10 são baseadas em ácido nucleico (6 RNA; 4 DNA), 10 são vetorizadas por vírus e 2 são vacinas de partículas semelhantes a vírus (VLP). Meu blog anterior sobre tecnologias de vacinas contém uma sinopse detalhada desses tipos de vacinas.
Procurando mais informações sobre o desenvolvimento da vacina contra a covid-19? Leia esse recente blog para obter mais detalhes sobre as candidatas a vacinas de mRNA ou o Relatório especial do CAS: Pesquisa e desenvolvimento de agentes terapêuticos e vacinas para a covid-19 e doenças relacionadas ao coronavírus humano publicado recentemente na ACS Central Science.
A fabricação de vacinas inativadas contra o SARS-CoV-2 (vírus inteiro e VLP) requer instalações de Nível de Biossegurança 3 e a produção de vacinas vetorizadas requer Nível de Biossegurança 2. Essas instalações são caras, exigem uma equipe altamente treinada e utilizam protocolos de processamento exclusivos para o vírus. Assim, pode levar muitos meses para produzir um suprimento de produto de vírus suficiente para as necessidades de saúde pública.
Da mesma forma que a vacina contra a gripe, a maioria dos candidatos a vacina contra a covid-19 também utiliza a administração intramuscular, exigindo que os pacientes recebam uma injeção. No entanto, algumas usam vias de administração alternativas. Duas candidatas a vacina de plasmídeo de DNA seriam administradas por via intradérmica, enquanto uma candidata a vetor se destina a ser administrada por via oral, uma vacina de vetor seria administrada por via intranasal e uma vacina de subunidade deve ser administrada por via subcutânea.
As várias candidatas a vacina contra a covid-19 também diferem, de forma significativa, no que diz respeito aos aspectos que afetam as questões de distribuição, incluindo prazo de validade, requisitos de armazenamento e protocolos de dosagem clínica. Por exemplo, muitas vacinas exigem refrigeração. Assim, sua capacidade de distribuição poderia ser controlada pela insegurança da gestão da cadeia de frio em algumas partes do mundo.Importante destacar que melhorou a capacidade de formular terapias biológicas como preparações liofilizadas, que exigem condições de armazenamento menos restritivas e pode ser particularmente útil para vacinas baseadas em ácido nucleico, incluindo as atuais candidatas a vacina de mRNA.
As questões restantes influenciarão o sucesso do programa global de vacinação para a covid-19
A despeito de tantas candidatas a vacina contra a covid-19 em andamento, baseadas em diferentes abordagens científicas para gerar imunidade, ainda não está claro qual oferecerá a combinação ideal de eficácia, segurança e utilidade prática para melhor apoiar o uso generalizado. Com muitos fatores a serem considerados, a primeira candidata aprovada pode não se confirmar como a plataforma de vacina preferida a longo prazo.
Além dos critérios óbvios de eficácia e segurança, diferenças na velocidade e simplicidade de fabricação podem afetar a adoção relativa de vacinas aprovadas. Por exemplo, vacinas baseadas em ácido nucleico estão em desenvolvimento há algumas décadas, com algumas vacinas atualmente licenciadas disponíveis nos EUA visando o mercado veterinário. Em princípio, uma vez conhecida a sequência de ácidos nucleicos do(s) antígeno(s) pretendido(s), estes tipos de vacinas dispensam o processamento a montante e apresentam uma plataforma reutilizável cujo processamento a jusante pode ser independente do gene codificado. Isso permite a produção sob diretrizes de fabricação menos rigorosas, acelerando o avanço da P&D através de ensaios clínicos até disponibilizar para o público. Do lado positivo, temos que essas tecnologias são escaláveis, o que pode facilitar a produção rápida de vacinas em momentos de crise. Do lado negativo, ao contrário das vacinas inativadas ou de subunidades que podem fornecer um depósito de antígeno para induzir imunidade, as vacinas de ácido nucleico podem estar sujeitas à supressão imunológica da expressão do antígeno, degradação metabólica e possível toxicidade de novos agentes de entrega.
Outro fator que pode influenciar quais vacinas aprovadas serão mais amplamente adotadas, no caso de várias serem aprovadas, é o método de administração. É importante observar que o SARS-CoV-2, assim como a gripe, é um vírus respiratório que deve driblar a barreira mucosa e a resposta imune local para iniciar o processo infeccioso. Foi observado experimentalmente que a imunização intramuscular2 tem um efeito variável na eliciação da imunidade da mucosa. Estudos recentes3-5 sobre a administração intranasal da proteína spike SARS-CoV-2, tanto como vacinas de vetor viral quanto de subunidade, retratam que é possível reduzir as cargas de vírus pulmonares, induzir anticorpos neutralizantes sistêmicos e produzir células T de memória em modelos animais da covid-19. Curiosamente, existem duas vacinas de mucosas atualmente em ensaios clínicos, uma vacina intranasal e uma oral. Elas terão que ser observadas no que diz respeito à eficácia e ao desenvolvimento futuro nesta área.
Finalmente, existe a questão da imunidade durável e da suscetibilidade à reinfecção, que influenciará o número de doses necessárias para eliciar a imunidade e a frequência com que a vacinação deve ocorrer para mantê-la. Efetivamente está claro que os anticorpos neutralizantes se correlacionam com algum nível de imunidade contra o SARS-CoV-2, mas o que não está claro é se isso representa o único critério de proteção. Existem relatos de pacientes diagnosticados com infecções por covid-19 pela segunda vez,8 mas não estão claras as implicações em relação a anticorpos protetores e uma vacina. As vacinas contra a gripe devem ser administradas anualmente como resultado da deriva antigênica, ou seja, a mutabilidade inerente na replicação do vírus que permite a variação na estrutura de HA e NA que protege o vírus da vigilância do sistema imunológico. O exame da mutação do SARS-CoV-2 mostrou que a maioria das substituições não sinônimas ocorre no nucleocapsídeo e nos genes de proteínas não estruturais.6,12 O mais preocupante é a mutação D614G no domínio de ligação ao receptor da proteína spike que faz a mediação da entrada viral nas células epiteliais respiratórias. Um relatório preliminar7 demonstrou aumento da infecciosidade in vitro e uma diminuição marginal na neutralização do soro de vírus com esta mutação. As vacinas experimentais “universais” contra a gripe, que tentam compensar a mutabilidade do vírus para evitar a necessidade de nova imunização a cada ano, compreendem sequências virais conservadas (epítopos) derivadas da matriz M2, nucleocapsídeo (N) e proteínas neuraminidase. Ficou demonstrado que elas fornecem imunidade em modelos animais e têm um efeito terapêutico em ensaios clínicos em humanos.9-11 Não se sabe se essa abordagem universal será necessária para vacinas contra a covid-19.
Esses fatores são apenas alguns dos muitos que continuarão a ser investigados e considerados como candidatos aprovados para a vacina contra a covid-19 que entrarem no mercado. O programa de vacinação contra a gripe bem-sucedido fornece uma base valiosa de experiência com vacinação generalizada que as organizações de saúde podem aproveitar para apoiar um esforço bem-sucedido de vacinação contra a covid-19, mas sempre há mais a aprender.
Como parte da comunidade científica global, nós do CAS estamos comprometidos em alavancar todos os nossos ativos e recursos para apoiar a luta contra a covid-19. Confira mais recursos do CAS covid-19, incluindo insights científicos, conjuntos de dados de acesso aberto e relatórios especiais.
Referências:
- https://www.who.int/publications/m/item/draft-landscape-of-covid-19-candidate-vaccines
- Fei Su, Girishchandra B. Patel, Songhua Hu & Wangxue Chen (2016) Induction of mucosal immunity through systemic immunization: Phantom or reality?, Human Vaccines & Immunotherapeutics, 12:4, 1070-1079, DOI: 10.1080/21645515.2015.1114195.
- Ahmed O. Hassan, Natasha M. Kafai, Igor P. Dmitriev, et al. A single intranasal dose of chimpanzee adenovirus-vectored vaccine confers sterilizing immunity against SARS-CoV-2 infection bioRxiv 2020.07.16.205088, DOI: 10.1101/2020.07.16.205088.
- Min-Wen Ku, Maryline Bourgine, Pierre Authié, et al. Intranasal immunization with a lentiviral vector coding for SARS-CoV-2 spike protein confers vigorous protection in pre-clinical animal models bioRxiv 2020.07.21.214049, DOI: 10.1101/2020.07.21.214049.
- Xingyue An, Melisa Martinez-Paniagua, Ali Rezvan, et al. Single-dose intranasal vaccination elicits systemic and mucosal immunity against SARS-CoV-2 bioRxiv 2020.07.23.212357, DOI: 10.1101/2020.07.23.212357.
- Christian Luke D. C. Badua, Karol Ann T. Baldo, Paul Mark B. Medina. Genomic and proteomic mutation landscapes of SARS‐CoV‐2. J Med Virol. 2020; 1‐ 20, DOI: 10.1002/jmv.26548.
- Jie Hu, Chang-Long He, Qing-Zhu Gao, et al. The D614G mutation of SARS-CoV-2 spike protein enhances viral infectivity and decreases neutralization sensitivity to individual convalescent sera bioRxiv 2020.06.20.161323, DOI: 10.1101/2020.06.20.161323.
- Akiko Iwasaki. What reinfections mean for COVID-19. The Lancet 2020, DOI: 10.1016/S1473-3099(20)30783-0.
- Xavier Saelens. The Role of Matrix Protein 2 in the Development of Universal Influenza Vaccines J Infect Dis. 2019:219 (Suppl_1):S68-S74, DOI: 10.1093/infdis/jiz003.
- Ki-Hye Kim, Yu-Jin Jung, Youri Lee, et al. Cross protection by inactivated influenza viruses containing chimeric hemagglutinin conjugates with a conserved neuraminidase or M2 ectodomain epitope Virology. 2020 (550) 51-60, DOI: 10.1016/j.virol.2020.08.003.
- Wei J, Li Z, Yang Y, et al. A biomimetic VLP influenza vaccine with interior NP/exterior M2e antigens constructed through a temperature shift-based encapsulation strategy. Vaccine. 2020 Aug 27; 38(38):5987-5996. DOI: 10.1016/j.vaccine.2020.07.015.
- D Mercatelli, F M Giorgi Geographic and Genomic Distribution of SARS-CoV-2 Mutations. Front. Microbiol. 2020; 11:1800, DOI: 10.3389/fmicb.2020.01800.