A proteína da enzima conversora de angiotensina 2 (ACE2) atraiu atenção considerável nos últimos anos por seu papel como receptora do vírus SARS-CoV-2, mas a enxurrada de pesquisas sobre a ACE2 também revelou possibilidades intrigantes para ela como um alvo terapêutico em várias outras doenças.
O que é ACE2?
ACE2 é uma proteína de membrana com um domínio enzimático localizado na superfície externa das células humanas. Foi chamada assim porque esta proteína foi identificada inicialmente como um homólogo (ou uma variante) da enzima conversora de angiotensina (ACE), uma enzima que medeia a formação do hormônio peptídico, angiotensina II a partir da angiotensina I. A ACE foi estudada extensivamente e é um vasoconstritor bem conhecido (isto é, causa contração muscular na parede do vaso sanguíneo e estreitamento do lúmen do vaso sanguíneo).
A ACE2, agora conhecida por ser um receptor viral, também atua como um vasodilatador, que contrabalança a ACE e faz com que as paredes dos vasos sanguíneos relaxem. Tanto a ACE quanto a ACE2 são atores importantes no sistema renina-angiotensina (RAS) que regula a pressão sanguínea e o fluxo sanguíneo para vários órgãos, incluindo pulmões, coração e rins.
Funções da enzima conversora de angiotensina 2
O sistema renina-angiotensina engloba uma rede complexa de enzimas, hormônios peptídicos e receptores, conforme mostrado na Figura 1. O angiotensinogênio, o precursor da angiotensina (Ang), secretado pelo fígado, é clivado pela enzima renal renina para produzir angiotensina I (Ang I). A Ang I é então convertida em Ang II pela ACE. A Ang II, um peptídeo hormonal de oito aminoácidos, liga-se aos receptores de angiotensina tipo 1 (AT1R) na superfície das células musculares em pequenos vasos sanguíneos para causar a vasoconstrição. Também promove a reabsorção de sódio pelos rins. Tanto a vasoconstrição quanto a reabsorção de sódio levam a um aumento da pressão arterial. Assim, a atividade anormalmente alta da ACE leva ao aumento dos níveis de Ang II, causando hipertensão.
Por outro lado, a ACE2 catalisa a conversão do peptídeo de oito aminoácidos, Ang II, em um peptídeo de sete aminoácidos (Ang 1-7), que parece ter o efeito oposto da Ang II por meio de sua ação em um receptor diferente, chamado receptor Mas (MasR). Embora o papel preciso da Ang 1-7 na regulação da pressão arterial não tenha sido totalmente elucidado, existem evidências de que ela reduz a pressão arterial e induz a vasodilatação. Além disso, a ACE2 cliva a Ang I em Ang 1-9 e, portanto, pode contrabalançar ainda mais o efeito da ACE removendo seu substrato. Ao causar a conversão de Ang II em Ang (1-7) e Ang I em Ang 1-9, a ACE2 pode desempenhar um papel na manutenção do equilíbrio entre vasoconstrição e vasodilatação para manter a pressão arterial sob controle.
O papel da ACE2 na infecção por SARS-CoV-2
Desde o surto de covid-19, os cientistas estão correndo para entender o vírus SARS-CoV-2, elucidar o mecanismo de progressão da doença e identificar opções de tratamento. Extensas pesquisas têm sido dedicadas à identificação de genes e proteínas viáveis como alvos para agentes terapêuticos e, no início da pandemia, foi descoberto um papel potencialmente importante para a ACE2 como receptor do vírus SARS-CoV-2.
A ACE2 pode ser reconhecida pela proteína spike (proteína S) na superfície do vírus SARS-CoV-2 ou SARS-CoV. As proteínas ACE2 e S ligam-se de forma análoga a uma interação chave e fechadura, que permite que o vírus entre nas células humanas (Figura 2).
Embora o SARS-CoV-2 seja muito semelhante ao SARS-CoV, o vírus que causou a SARS (Síndrome Respiratória Aguda Grave), algumas mutações no domínio de ligação ao receptor da proteína S aumentaram significativamente a afinidade de ligação do vírus SARS-CoV-2 com a ACE2. Essas diferenças podem indicar a maior transmissibilidade da covid-19. Há evidências de que a ACE2 é expressa nos nossos pulmões, sistemas digestivos, corações, artérias e rins. A expressão de ACE2 também aumenta com a idade e é maior em pacientes que sofrem de doenças cardiovasculares, possivelmente explicando o aumento da gravidade da covid-19 nesses subgrupos.
Interações da proteína ACE2 em terapias para a covid-19
Embora funcione como o local de ancoragem do SARS-CoV-2 e atua como mediador da entrada do vírus nas células hospedeiras, pode ser que a ACE2 não atue sozinha nesse processo. Outras enzimas do hospedeiro também estão envolvidas na facilitação da entrada viral. Enzimas chamadas proteases são responsáveis por remover fragmentos tanto da proteína ACE2 quanto das proteínas S para potencializar seu processo de interação. Outras enzimas modificam o complexo proteico ACE2-S empacotado em vesículas ligadas à membrana para facilitar a entrada viral na célula hospedeira. Portanto, a ACE2 e sua interação com o SARS-CoV-2, bem como outras proteínas envolvidas nesse processo, é concebível que sejam alvos válidos para agentes anti-covid-19.
Após a ligação viral, especula-se que o domínio catalítico da ACE2 possa ser bloqueado pelo vírus, resultando em acesso limitado ao substrato, Ang II, causando acúmulo de Ang II. Além disso, com a entrada viral, a superfície da ACE2 pode ser internalizada para as células, diminuindo a função enzimática da ACE2 (Figura 3). Como resultado da atividade reduzida de ACE2, os níveis circulantes de Ang II podem aumentar, como foi relatado em pacientes com covid-19. O nível de Ang II exibe uma correlação positiva linear com a carga viral e lesão pulmonar, indicando uma ligação direta entre a regulação negativa da ACE2 tecidual, com o desequilíbrio do RAS e o desenvolvimento de danos nos órgãos em pacientes com covid-19. No entanto, são necessários mais estudos para confirmar esse achado.
O potencial da ACE2 como alvo para terapias para a covid-19
Devido ao papel crucial que a ACE2 desempenha na invasão de células hospedeiras pelo SARS-CoV-2, estão em andamento esforços para desenvolver medicamentos que possam bloquear sua função nessa capacidade. Até o momento, nenhum medicamento de pequenas moléculas foi aprovado por meio de reaproveitamento de medicamentos para esta aplicação. No entanto, um medicamento biológico recentemente desenvolvido pode atingir esse objetivo. Este medicamento de grau clínico, a ACE2 solúvel recombinante humana (hrsACE2), foi originalmente projetado para a síndrome do desconforto respiratório agudo (SDRA).
O hrsACE2 não possui o segmento de fixação à membrana e, portanto, não se liga às células humanas. No entanto, é capaz de se ligar ao vírus SARS-CoV-2 como um receptor chamariz. Ao se ligar competitivamente a esse coronavírus, ele impede a ligação viral ao ACE2 natural ligado à membrana e, assim, bloqueia a entrada do vírus nas células hospedeiras (Figura 4). Estudos em células cultivadas e vários organoides mostraram de fato que hrsACE2 inibiu o vírus de infectar as células hospedeiras. Também pareceu ser bem tolerado e provocou uma rápida diminuição nos níveis séricos de Ang II em pacientes com SDRA em um ensaio clínico de 2017. Espera-se que o hrsACE2 seja o primeiro medicamento direcionado ao ACE2 e abra as portas para terapias direcionadas na luta contra a covid-19. O que é mais encorajador, o hrsACE2 mostrou potencial como tratamento combinado, melhorando a eficácia do remdesivir em infecções por SARS-CoV-2.
Aplicações terapêuticas futuras da ACE2
Além da covid-19, a via ACE2 oferece uma rota potencial para tratar outras doenças respiratórias, como a gripe de 2009 (H1N1) e a gripe aviária (H5N1), possivelmente desenvolvendo ACE2 recombinante para uso em conjunto com um inibidor de AT1R ou de ACE. As doenças cardiovasculares são outra área em que a ACE2 tem encontrado interesse crescente, e novos alvos como a ACE2 podem ajudar a encontrar maneiras mais eficazes de acessar a hiperatividade do SRA, que desempenha um papel muito relevante em condições como a hipertensão. É provável que a ACE2 também seja um alvo importante na luta contra o diabetes tipo 2, por exemplo, usando as vias mediadas pela ACE2 para anular os efeitos da Ang II hiperativa no rim do diabético.
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